10.2.13

As touradas e a confraternização entre as classes sociais




Sabendo-se que o argumento da tradição não colhe, que o do contributo para a promoção turística é falso e que até hoje nunca ninguém provou que as touradas contribuíssem positivamente para a criação de riqueza nos Açores, os adeptos das touradas alegam o seu importante papel social, nomeadamente no fomento do convívio entre as populações e no esbatimento das diferenças entre as classes sociais.

Não é a venda de vídeos que ninguém bem formado pode apreciar e que só nos envergonha perante os visitantes mais cultos e sensíveis ao sofrimento do animal, que é forçado a participar, e humano ainda que participante voluntário, não é a venda de gelados, nem de favas ou de amendoins, não é a venda de cerveja, que nem açoriana é, e muito menos as taxas pagas pelos promotores das touradas que contribuem para uma economia regional sustentável. Por acaso, já alguém teve o cuidado de fazer o balanço entre as receitas e as despesas das touradas de todos os tipos?

Estou convencido que este balanço por ser negativo para a Região nunca será feito. Com efeito, a vinda de touros, cavalos, toureiros do continente português ou do estrangeiro para as touradas de praça é uma saída de dinheiro que muito bem poderia ser investido em atividades produtivas nos Açores. No caso das touradas à corda, algum comércio que se faz de certeza não compensa o que não é feito noutras áreas comerciais, o tempo de trabalho que é perdido para a criação de riqueza, as despesas com os cuidados de saúde derivados dos feridos que vão acontecendo e as vidas que se perdem não farão com que o “crime” não compense.

Relativamente ao convívio que anda associado às touradas à corda acho que o mesmo poderá continuar a existir sem haver a necessidade de ter estar associado à presença de um animal. Basta imaginação e criatividade e estas os terceirense têm quanto baste para fazerem evoluir as suas festas e senão a possuíssem bastava seguirem o exemplo do Boi-de- mamão que segundo alguns é “uma brincadeira típica do folclore da ilha de Florianópolis, envolvendo diversas personagens e músicas com ritmos açorianos”.

Por último, o outro argumento que é por demais difundido é o de que as touradas, sobretudo as à corda, permitirem o esbatimento das diferenças de estatuto social e tornarem possível a confraternização entre as várias classes sociais.

Eu que nunca acreditei que as classes sociais, tal como a luta de classes, já haviam sido abolidas, também não acredito que com as touradas haja uma confraternização entre ricos e pobres e entre exploradores e explorados. O que há e sempre houve, ao longo dos tempos, são alguns populistas que oferecem touradas e vacadas ao zé-povinho a troco de votos e de outros favores, sabendo que estão a dar-lhe o ópio que o insensibilizará face ao sofrimento animal e o anestesiará para a luta pelos seus direitos.

Sobre o assunto, Paulo Silveira e Sousa, no texto “As elites, o quotidiano e a construção da distinção no distrito de Angra do Heroísmo durante a segunda metade do século XIX” (http://hdl.handle.net/10400.3/399) publicado na revista Arquipélago História, em 2004, referindo-se às touradas à corda na segunda metade do século XIX, escreve:

“As touradas eram um palco para demonstrações de força, de destreza, e para as relações entre classes segundo o velho modelo paternalista e hierárquico. Apesar de serem frequentadas por todos os grupos sociais, tanto urbanos como rurais, não podemos daqui inferir apressadamente a conclusão de que estas eram uma espécie de espaço igualitário. Só aparentemente a tourada era um espaço sem distinções de classe. A marca do ganadeiro que apresentava os touros, a presença das suas equipes, dos seus pastores, ou a sua própria presença pessoal criavam logo diferenças, dando-lhe visibilidade e notoriedade.”

A corroborar a afirmação anterior o mesmo autor, no texto referido, um pouco mais adiante afirma:

“Entre os senhores de gravata da cidade, as suas esposas e filhas, que de um balcão seguro observavam o touro, e os camponeses descalços que corriam fugindo das investidas do animal, as diferenças estavam novamente bem claras. Alguns notáveis podiam estar presentes por serem ainda donos de uma antiga casa de família, reproduzindo-se assim a deferência com que os camponeses tratavam os senhores das vilas e cidades, ou podiam ser apenas os convidados de um proprietário influente da freguesia. Outros ainda eram os representantes, igualmente, falidos, do velho mundo marialva.”

Hoje, depois de muitas voltas ao Sol dadas pela Terra, depois de muitas ditaduras, a última das quais a partidocrática, a situação não se alterou significativamente. Com efeito, continuam as touradas a alimentar uns poucos à custa dos dinheiros que são de todos.

Mariano Soares

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